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22/02/2020 às 02h43m - Atualizado em 22/02/2020 às 07h50m

Interior de Pernambuco carrega tradições centenárias que mantêm vivo o Carnaval

Estado tem 17 polos, cada um com suas características. Reportagem mostra três manifestações da Mata Norte, Agreste e Sertão.

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Papangus, maracatu de baque solto, bonecos gigantes. Esses são apenas três exemplos de tradições centenárias que se manifestam no Carnaval de Pernambuco, remetendo à própria formação cultural do Estado. Outra característica em comum é que as três surgiram fora do cinturão de praias, prédios e asfalto que compõe o Grande Recife. Como você já deve saber, os papangus nasceram em Bezerros, no Agreste. O baque solto, também conhecido como maracatu rural, tem origem na Zona da Mata Norte, na zona agrícola de municípios como Aliança e Nazaré da Mata. E os famosos bonecos gigantes? Ganha um doce quem disser que eles vêm de Belém do São Francisco.

Assim como o Carnaval brasileiro é muito maior e mais diverso que as festas de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, o Carnaval pernambucano vai muito além dos passistas de frevo no Marco Zero ou do mundo de gente em fantasia que sobe e desce a Ladeira da Misericórdia, mostrados exaustivamente todos os anos em sites e TVs Brasil afora quando se fala na folia de Olinda e Recife. Só na lista da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), constam 12 polos carnavalescos, fora os cinco já citados, cada um com suas tradições e costumes populares. São eles: Arcoverde, Catende, Goiana, Gravatá, Itamaracá, Paudalho, Pesqueira, Petrolina, Salgueiro, Surubim, Triunfo e Vitória de Santo Antão.

Como não há espaço que dê conta de toda essa profusão cultural, a Folha de Pernambuco mostra a folia das três cidades mencionadas no primeiro parágrafo, com cada uma delas representando uma mesorregião do interior do Estado: Zona da Mata, Agreste e Sertão. “Cada município tem sua característica, e a cultura é isso. Quem faz a cultura são as pessoas que ocupam esses espaços, que interagem com os costumes daquela população, os hábitos e o contexto histórico e geográfico. E a arte permite que a gente faça uma leitura desses espaços de convivência”, observa a professora e historiadora Ladjane Torres, especializada em História de Pernambuco.

A Terra dos Papangus
Chamados inicialmente de “papa-angu”, em referência a um prato comum no interior, os papangus são mais que um símbolo do Carnaval de Bezerros. Constituem, junto da xilogravura e da literatura de cordel produzidos pelo mestre J. Borges, a própria identidade cultural da cidade. Um simbolismo que o município tem buscado reforçar nos últimos anos. “A gente procura trabalhar a figura do papangu nas escolas e faz oficinas de máscaras para as crianças. Além disso, nós temos mais de 70 blocos e todos eles só recebem apoio se tiverem um paredão de, pelo menos, quinze papangus na frente”, afirma o diretor municipal de Cultura, Sérgio Brayner.

Toda a ênfase nessa identidade se ancora em uma tradição que data do início do século 20. Cobertos por máscaras grotescas e roupas, em geral, emprestadas, os papangus andam pelas ruas e brincam com quem encontram pelo caminho, dando susto nas crianças e caçoando dos adultos. Às vezes, batem à porta das casas e são recebidos com lanches como um angu de galinha. “A magia é você não ser reconhecido. Você conhece um amigo e sabe algumas coisas da vida dele, muda a voz e o andar e, quando encontra ele, diz: ‘Você fez isso, fez aquilo’. E a pessoa fica curiosa, tentando descobrir quem é”, conta o carnavalesco Roberval Lima, que participa de um grupo de papangus desde a década de 80.

O artista plástico de 56 anos é também o diretor da Estação da Cultura, uma antiga estação de trem localizada no Centro de Bezerros que abriga uma escola de música e duas salas de museu, uma delas dedicada aos papangus. Das roupas mais simples do passado aos trajes e fantasias mais elaboradas de hoje, a brincadeira evoluiu com o tempo, assimilando outros elementos culturais. “A origem vem de uma máscara de coité, um pano amarrado na cabeça, e roupas velhas. A luva era uma meia. Depois, vêm as kaftas, um tecido reto costurado nas laterais com máscaras de pano. E agora a gente encontra papangus com fantasias temáticas, homenageando artistas ou fazendo críticas irreverentes à política”, explica a pesquisadora Ladjane Torres.

Todos os anos os mascarados se reúnem um concurso realizado no domingo e na terça-feira de Carnaval que elege os papangus mais bonitos e elegantes. Os participantes podem competir individualmente, em duplas ou em grupos. O psicólogo Edvan José da Silva, 37, participa da mesma equipe de Roberval, vencedora de várias edições. “A gente já saiu com roupas tradicionais, mas, depois, foi investindo mais um pouco”, diz. O folião, que começou a brincar aos 12 anos, conta que prepara a fantasia desde novembro. “A graça é o mistério de brincar com o outro até ele identificar”, afirma.

Bonecos de Belém
Ao contrário do que muita gente pensa, os célebres bonecos gigantes, que há décadas desfilam nas ladeiras históricas de Olinda, não foram criados na Marim dos Caetés. Suas origens remontam a uma distância de 497 quilômetros da Cidade Alta, no município de Belém do São Francisco, no Sertão de Itaparica, onde foi feito, em 1919, o registro do primeiro boneco gigante do Brasil, o Zé Pereira, com quatro metros de altura. “Em 1917, havia registros de pessoas que se vestiam de bonecos, mas com estatura normal. E o Homem da Meia-Noite de Olinda só nasceu na década de 1930”, ressalta o professor Antony Dunes, da Biblioteca Pública da cidade sertaneja.

A criação do Zé Pereira tem, na verdade, uma inspiração europeia. “No início do século 20, o município de Belém, já emancipada, recebeu um vigário, Norberto Phallampin, que falava das procissões onde bonecos gigantes representavam figuras bíblicas, querendo implantar isso aqui. Na época, já existia Carnaval na cidade, com a orquestra filarmônica, a quinta mais antiga do Estado. Daí, o jovem artesão Gumercindo Pires de Carvalho ouviu essa ideia e decidiu fazer um boneco, mas não com um propósito religioso”, narra o pesquisador.

Desde então, o Zé Pereira, que originalmente tinha feições exageradas como as primeiras máscaras de papangu, percorre as ruas da cidade num cortejo que começa na beira do rio São Francisco. O costume faz alusão ao personagem português que, reza a lenda, trouxe ao Brasil a tradição do entrudo, brincadeira do além-mar em que os participantes mascarados ou fantasiados atiravam entre si água ou substâncias como goma, barro, cal e farinha. O hábito lusitano, comum nos dias que antecediam a Quaresma, serviu de base para o surgimento de diversas práticas carnavalescas atuais, incluindo os bonecos gigantes, os papangus, as La Ursas e os caretas.

Dez anos depois do primeiro desfile do primeiro boneco, veio a estreia da companheira de Zé Pereira, a Vitalina. Por muito tempo, os foliões celebravam o matrimônio dos dois, acompanhados pela bicharada, brincantes fantasiados de animais. Os bonecos originais foram destruídos em um incêndio nos anos 1960 e acabaram sendo remontados com aspectos mais suaves. “As expressões eram realmente grotescas, com essa intenção de fazer graça, correr atrás das pessoas. Depois, foram se refinando como figuras”, diz Antony Dunes.

Hoje o cortejo conta oficialmente com 17 bonecos e sai das margens do rio São Francisco em direção à Igreja Matriz, no Centro. O desfile é realizado da sexta à terça-feira, sempre a partir das 18h. Não se sabe, ao certo, até que ponto os bonecos olindenses sofreram influência dos de Belém, mas, rivalidades à parte, o fato é que a primeira desenvolveu uma prática criada pela outra. “Olinda fez o estudo da fibra de vidro para deixar o boneco mais leve. O Zé Pereira de Belém chegava a pesar 70 kg. Então, Olinda foi refinando a técnica e é a pátria dos bonecos até pela dimensão da produção e difusão”, ressalta o Dunes. A colaboração foi reconhecida em uma iniciativa que trouxe Zé Pereira e Vitalina para o Bairro do Recife no ano passado.

Zona dos Caboclos-de-Lança
Mesorregião historicamente marcada pela atividade canavieira, a Zona da Mata Norte é rica em cultura. Foi ali, entre os antigos engenhos de cana-de-açúcar, que nasceu, no fim do século 19, o maracatu de baque solto ou rural. Diferente do baque virado, de origem africana, a dança que simula uma batalha colorida de caboclos-de-lança tem raiz indígena, do culto da jurema.

“Antes de ter um significado religioso, os trabalhadores desses engenhos se reuniam para bater o mulungu, uma madeira usada no trabalho que se batia como um tambor. Depois, eles omeçaram a transitar para arrecadar dinheiro, comida e cachaça para o Carnaval. À medida que andavam de engenho em engenho, se deparavam com outros grupos de maracatu. Originalmente, havia muita rivalidade. E a própria formação tinha disso porque eram guerreiros contra guerreiros”, detalha a historiadora Alexandra de Lima Cavalcanti, mestranda em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio e Artístico Nacional (Iphan).

Nas primeiras décadas, a manifestação foi reprimida pela polícia e pela Igreja Católica. “Ao longo do Carnaval, os maracatus foram pacificando essa brincadeira e todos os elementos utilizados para a violência foram ganhando outros simbolismos, cores, fitas, transformando-se num símbolo dessa luta”, diz a pesquisadora. Embora não se saiba, com precisão, quando e onde a manifestação começou a ser celebrada, o primeiro grupo de que se tem registro é o Cambindinha de Araçoiaba, de 1914, que ficou em inatividade por alguns anos. Mas o que passou mais tempo consecutivo em atividade foi o Cambinda Brasileira, criado em 1918 no Engenho do Cumbe, em Nazaré da Mata.

A cidade é até hoje a que concentra mais grupos de maracatu rural no Estado. Lá, estão sediadas 19 do total das 113 contabilizadas pela Associação dos Maracatus de Baque Solto de Pernambuco (AMBS-PE). Depois de Nazaré, vem Araçoiaba, com dez grupos, Glória do Goitá, com nove, e Aliança, com oito. Hoje, assim como outras práticas carnavalescas, a manifestação assimila elementos de outras danças, inclusive do maracatu de baque virado. “A gente tem arreiamá, índia, rei, rainha, dama de paço”, enumera Edielson Luiz de Freitas, o Mestre Fibia, 39.

Ele comanda o grupo Águia Dourada, que reúne cerca de cem brincantes. O conjunto, que vem se preparando desde outubro, se apresenta no domingo de Carnaval, quando sai de Nazaré da Mata para a Cidade Tabajara, em Olinda, onde acontece na segunda-feira um grande encontro de maracatus. “Nazaré sempre foi a cidade que teve mais mestres e é cercada por usinas de cana-de-açúcar. Muitos dos caboclos-de-lança são cortadores de cana, mas agora a cultura evoluiu tanto que tem professores e vários outros tipos de profissionais brincando”, lembra o Mestre Fibia.

 Reprtagem da Folha de Pernambuco

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